LEIA-ME:

Abarcar o mundo ou abraçar o mar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"ESTIVE NO INFERNO E ME LEMBREI DE VOCÊ"

SOBRE OS TEUS DIAS DE VÍCIO
A MOÇA DIZ:

Tua pele estremece perante a aproximação da agulha oca.
Os teus olhos contemplam o Dragão de Mil Cabeças enquanto os teus dedos tocam a seringa com ternura e afeto. Quase como uma mãe sem ventre.
Eles mentem quando pensam e falam sobre ela, pois aquilo que estala dentro de seu peito é Amor na forma mais bruta de tal modo que só ela o percebe.
Todos os seus membros chacoalham e se entortam como parte do ritual de adoração e auto-piedade ao Deus-Seringa enquanto o Dragão ancora suas unhas perpétuas nas costas da moça com afinco e desejo.
Ela sente os solavancos de desespero dentro de seus ossos e a abstinência quase pode ser tocada por suas mãos.

Isso não é um vício. Isso é amor.

Quando a agulha toca o seu corpo a moça pode sentir a maciez dos lábios de uma criança morta enrijecendo seus pêlos e esvaindo sua libído. Sim, isso é amor. Um feto agoniza em seus braços e uma canção toca em seu sexo.
O Dragão lhe oferece um beijo doce, mas a seringa cobra um preço amargo demais por suas dívidas aveludadas. Algo se esvai de sua pele enquanto o seu amor é suprido.
É uma espécie de retribuição, ela pensa.
Afinal, Deus sempre foi um ser egoísta e manipulador que anseia pelos olhares de todos a todo o momento, para que dirijam-se sempre para si.
Sim, é uma espécie de retribuição.

Pois o amor tem um preço. Sempre tem um preço. Sempre. E sempre cobra mais a cada pequena dose de sua benção pictórica, até o dia em que a moça pereça nua e inúltil dentro de um quarto escuro recheado com os órgãos internos de sua repressão materna auto-contida e estilhaçada sob seus pulsos rasgados.
E o Dragão se delicia e se contorce em solavancos de amor ao ouvir o seu sussurro.
A moça o sente dentro de sua coluna como um verme febril, girando e gemendo.
Como um pênis ereto.
Como uma vara rotunda dentro de sua boca.
Como uma verve imunda dentro de seu anûs.
Pois o prazer a inunda. O amor a completa.
"All we need is love"
Ela canta. Ela quase canta, em meio ao esperma e a saliva que completam seu rosto e fecundam seus olhos.
"All we need is love"
Ela grita, mas sua voz ganha eco dentro de suas vértebras e se perde em seu estômago.
"All we need is love"
"Love"
Ela chora em desespero e suas lágrimas masturbam seu rosto e violam sua voz, quando todos os úteros se tornam inférteis.
"Love is all we need"
Ela chora.
"Love is all we need"
Chora.
"Love is all we need"
E chora.
Mas não sente nada.
Nunca.
Ela nunca sente nada.

Quase

Como

Se

Tivesse

Nascido

Quebrada.

Enfim,
o Dragão repousa.
E o seu sono pesa dentro dela.
O desejo desvanece e o calor retorna ao frio.
Como uma agulha.
Como um gancho.
Um pequeno gancho agarrado a sua boca que engole sua face e distorce seu sorriso falso quando o vento a toca e a água invade seu útero durante as manhãs vazias e simplórias diante das reprises da TV.
Diante do noticiário.
Diante dos colegas de trabalho.
Diante do maldito espelho quebrado que se recusa a parar de refletir a expressão de tédio que se repete em todos os cacos da mesma forma.
Os mesmos olhos.
A mesma boca.
A mesma mentira.

Mas a moça sabe que em breve o Dragão renascerá de novo e sua paixão afiada a de retornar uma vez mais para ela.
E a agulha.
E a seringa.
E o amor.
Pois o amor vencerá no fim de todas as coisas.
Sim.
O amor sempre vence.


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O título deste post é uma citação ao título do capítulo 5 do livro O Cheiro do Ralo, escrito por Lourenço Mutarelli e lançado no Brasil pela Devir Livraria. Interessados em conhecer a obra do autor (que eu recomendo completamente) podem acessar o link http://www.devir.com.br/mutarelli/ , garanto que valerá a pena. 

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O HOMEM BRANCO - SIMETRIA

Seus olhos arderam e sua mente tropeçou ao perceber a figura diante de si. A água havia tomado conta de todos os lugares de sua vida durante aquela manhã pálida de outubro e a chuva se interpunha feroz entre o pátio vazio e os resquícios sobressalentes de sua sanidade.

O Homem Branco fugia.

Completamente perdido e sozinho em um mundo devastado, ele percebia tudo ceder ao seu redor enquanto corria, pé ante pé, desviando-se a todo o custo da inundação.

Naquele momento todas as coisas passavam por sua vista como penumbras distantes enquanto a morte e a dor erguiam-se com violência por todos os lados. De súbito, Homem Branco sentiu suas pernas estremecerem e fraquejarem e percebeu algo assustador movendo-se a sua frente: uma iminente figura deitada ao chão de forma solene, como um nobre rei. Imune a água e imune a dor, o estranho ser ergueu sua cabeça em um gesto astuto, encarando o Homem Branco de forma severa.

Era um enorme Tigre Pardo, com os olhos ardendo feito chamas em fúria.

Paralisado por breves segundos que se estenderam e se desdobraram em sua mente, o Homem Branco sentiu-se tomado pela força devastadora de um rio que jamais muda o seu curso. Confuso, ele quase não pôde perceber o salto do animal em direção ao seu tronco, com seus dentes apontados como lâminas penetrando sua pele e fincando profundas em sua alma. Em seguida veio a dor e o sangue. O gosto da derrota fraquejou em sua mente e tomou sua garganta. O Homem Branco olhou para o vazio dos céus e caiu entorpecido, como uma folha largada em uma tempestade. Seu corpo atingiu a água de forma violenta, e suas costas foram impressas no mármore.

Naquele terrível momento algo aconteceu. O Homem Branco ouviu um sussurro vago em sua mente. Algo distante e sombrio que exalava vinho tinto e carne fresca. Sua mente desfaleceu diante da voz. Duas vozes, na verdade, duas vozes de mulher. Do seu lado Direito falava Maria, a virgem, e do lado Esquerdo falava Madalena, a prostituta. Nos lábios de ambas o Homem Branco podia sentir o cheiro do Ouro e do Pó.

A indecisão tomou seu sangue como os lábios do Tigre Pardo e naquele momento o Homem Branco exitou.

Ao recobrar a plenitude de sua consciência o Homem Branco percebeu, assustado, que o Tigre estava deitado ao seu lado. Os olhos antes vermelhos do animal agora estavam cegos e o Tigre parecia embebido em sangue. Mas não era o sangue do Homem Branco desperdiçado e sim o sangue da própria fera que se revelava insólito ao chão. Nesse momento, o Tigre Pardo falou:

"Eu te revelo um grande mistério nesta hora, quando todas as tuas esperanças falham.
Tu que está em pé entre o abismo da altura e o abismo da profundeza saiba que em cada um dos lados lhe espera um Companheiro; e aquele Companheiro é Tu Mesmo.
Tu não pode ter outro Companheiro.
Muitos sábios têm erguido sua voz e dito: 'Procura a brilhante Imagem no lugar sempre-dourado e uni-vos com Aquilo';
Da mesma forma, muitos loucos têm erguido sua voz e dito: 'Desce ao mundo da escuridão esplêndida e desposai aquela Criatura Cega no limo';
Eu, que estou além da Sabedoria e da Loucura, ergo-me pra ti e digo: realizai ambas estas bodas! Uni-te a ambos os Companheiros!
Cuidado, cuidado eu te digo, não procureis um deles para perder o outro.
Se algum dia Tu quiser seguir-me e tornar-te como eu, ao teu próprio modo, prossegue então retamente erguido, com a cabeça acima dos céus e os pés abaixo dos infernos."

Assim disse o Tigre Pardo, e sua penumbra sumiu perante o pátio vazio. A chuva cessou. A água se conteve. E o Homem Branco, uma vez mais, tornou-se feliz.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O HOMEM BRANCO

O Homem Branco teve um sonho frio durante uma noite quente, e em seus olhos era possível ver refletida a deformada figura de uma torre cinza, a repousar sobressalente em uma colina parda.
A pele de concreto frio da torre podre se ergueu por sobre os pés do Homem Branco como um cancêr, e em seu topo dentes lânguidos permeavam os lábios de uma boca negra, apontados para o vazio do céu como uma ordem ou como uma acusação.

O vento rugiu.

A forma gigantesca dos Galináceos de Néon Fosco ainda pairava sorrateira entre o Homem Branco e a torre cinza, com seus ossos ancestrais fosforescendo e sobressaindo de suas peles transparentes e de seus olhos úmidos. Os monstros percorriam as rochas de forma lenta e ereta, em busca de sua caça noturna. Predadores de natureza robusta, oriundos da radiação do mar e das estrelas, infectados pelo ardor de seu pecado original.
Naquele momento algo aconteceu: o Homem Branco percebeu um gosto estranho a lhe tomar as entranhas. Seu sangue ferveu e o ácido de bateria contido em seu corpo percorreu suas veias como veneno, deleitando seu coração como o vinho e abarcando sua alma como o mar. A este sentimento tão obtuso e tão assassino o Homem Branco concedeu o nome de SOLIDÃO.

E ele beijou sua solidão. E Ela lhe beijou de volta, como Judas.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

SELO DE OURO



O Selo de Ouro é uma forma simples e inteligente de indicar blogs que você conhece e admira à amigos e contatos, de forma a ajudar na divulgação dos mesmos. Confesso que não conhecia a iniciativa até esta tarde, quando me deparei com o meu endereço linkado no blog do meu amigo e colega Elton Tavares, o De Rocha!.
Curti a idéia, afinal a internet e a cultura de blogs são duas das ferramentas que mais se beneficiam com os conceitos de hipertexto e similares. Portanto, aí vai minha lista:


Ao aceitar receber o Selo, os indicados devem cumprir quatro procedimentos básicos:

1 º Colocar a imagem do selo no seu blog;
2 º Indicar o link do blog que o indicou;
3 º Indicar outros blogs para receberem o selo;
4 º Comentar nos blogs de seus indicados sobre o selo.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

OS FILHOS DO TOURO

Conta-se que certa vez, na desolada vila onde vivo, nasceu um bebê de monstruosa figura, deformado de forma grotesca: um corpo de criança pequena seguido, de forma inexplicável, pela cabeça de um touro robusto. Parido como o quinto filho de uma mulher de vida imprópria, o bebê foi visto como uma maldição terrível oriunda dos Deuses do Apêndice Coxo - lar divino dos Corações Vazios. A mãe da criança, de acordo com os relatos mais obtusos, tinha por costume entregar seu sexo aos touros, acometendo-se de forma maníaca a paixão ensandecida e ao desejo louco pelo animal. Tal costume impróprio havia sido herdado através de longo engodo perpetrado com o passar dos anos por todas as mulheres desta família: a entrega física ao touro - em sua viril corpulência de bravo monstro entrelinhado por pêlos - as tornava senhoras de atração e de apetite sobrenatural: meretrizes de sabor único. Ao mesmo tempo, acreditava-se que toda a família da moça provinha de atos de bestialismo, descendentes de uma longa linhagem de touros: os Filhos da Paixão Animal. As mulheres eram educadas desde a infância para o convívio com os animais selvagens, seus futuros esposos e cumplíces de seu pecado. Com o passar das gerações, no entanto, a loucura e a tragédia apossaram-se de cada um dos homens da família. Anteriormente reconhecidos como senhores de força única e de virilidade plena - imbatíveis entre seus pares - ao descobrirem-se frutos da luxúria imprópria e, principalmente, ao reconhecerem tamanha insanidade dentro de seu próprio convívio familiar - em suas mães: as meretrizes da entrega - os homens e rapazes oriundos do secular sêmem do touro foram acometidos pela covardia e pela tristeza, encolhidos dentro de seus próprios órgãos de vontade curvada. Por fim, coube a família apenas o abandono e o desprezo, tornados feiticeiros e demônios aos olhos de seus vizinhos. 
Desta forma, como a maldição definitiva a desabar sobre a linhagem dos filhos do touro, viu-se nascer a medonha criança-monstro, o bebê que sustentava os cornos de um boi. O garoto foi imediatamente recolhido do convívio comum e escondido em um enorme labirinto de pedras do vale, esculpidas de forma assombrosa pela erosão do mar e pelo infindável contar dos anos. Lá o bebê cresceu e tornou-se adulto, sobrevivendo solitário a partir do sangue das moças e dos rapazes perdidos dentro de seu labirinto sem retorno. Metade homem e metade touro, o monstro alimentava-se ferozmente do corpo e da ânsia destes desamparados e desguiados, presos no centro de sua insustentável dúvida bestial forjada nas raízes da  pedra. Devorando-os com raiva e com fome, eternamente insaciado pela chama de sua paixão sem fim, o homem touro morreu solitário em algum lugar do vazio infinito.
Mesmo morto, no entanto, ainda é possível sentir o gosto de seu ódio preso no fundo de minha garganta - basta engolir a saliva com força. Quase posso vê-lo a se debater ferozmente no mais profundo vale de meu coração e de minha alma suja, contorcendo-se e chorando em agonia: o terrível pranto do monstro, capaz de envergonhar o sol e de entristecer o mar.
Outrora o Touro foi o pavor do homem, na época em que a caverna era o refúgio mais seguro e a escuridão era o temor mais maligno. Agora, o urro do Minotauro é apenas uma voz acuada contida num sussurro esquecido; uma palavra perdida que nunca, nunca, há de ser revelada.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

"INSTANTE"

Adiante o pórtico haviam duas estradas, apontada cada uma em direção contrária.

Ao seu redor estendia-se um amplo vale de pedras e despenhadeiros até o perder da vista, a descer e a subir através das nuvens e além do mar. Acima do pórtico havia um letreiro, sobre o qual se lia a palavra "instante" pintada em letras pretas.

Adiante o pórtico haviam duas estradas, apontada cada uma em direção contrária.

A primeira estrada seguia pela tua esquerda, larga e declinada por uma eternidade, e segunda estrada seguia pela tua direita, aspiralando-se sobre as pedras murchas por outra eternidade. Perdidas em meio aos vales e as montanhas, ninguém ainda havia percorrido nenhum dos dois caminhos antes.

Mas se adiante o pórtico haviam duas estradas, apontada cada uma em direção contrária, ao seguir por apenas uma delas  quem ainda há de dizer que ambas não hão de se encontrar um dia, em algum futuro: cruzando-se, confundindo-se e mudando o seu rumo?

Pois tudo o quanto é reto mente. E se o "instante" agora se prosta diante de ti e se abre como o céu ou como o mar saiba que atrás de ti outra longa estrada se estende rumo à eternidade. E por ela, tudo há de passar uma vez mais.

Mesmo este "instante", tão recluso e tão próprio, já não passou por aqui um dia antes, uma outra vez? Tu mesmo não há de se lembra daquela noite? Pois se adiante o pórtico existem duas estradas, apontada cada uma em direção contrária, e se tu escolhesse seguir por uma delas - qualquer que seja - pela eternidade, um dia não haveria de voltar - uma vez mais - para cá?

DEUS SALVE A RAINHA!

Impresso na gráfica dos Judeus-Sem-Pênis.