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Abarcar o mundo ou abraçar o mar.

sábado, 11 de agosto de 2007

O CIRCO - capítulo segundo: O HOMEM-LOBO


Eu ouço o som da primeira trombeta. É a trombeta de bambu encrustrada de pequenas safiras cor-de-mel. É o sinal de que perderam meu rastro. prossigo me esgueirando pela lama e pelas árvores ocas desta sombria floresta.

ELE É UM HOMEM VESTIDO DE LOBO.
ELE É UM LOBO COM VESTES DE HOMEM.
AO ESGUEIRAR-SE PELA NOITE, MENINA, CORRE, TE ESCONDE.
AO ESGUEIRAR-SE PELA NOITE MENINA, ELE TE COME.

Meus pés esfriam. Agora corro. Atravesso lagos em um pulo. Sorrio as árvores. Elas me olham com repulsa, me acusam de descuido e exibisionismo. Gargalho para elas. De que lhes vale a sabedoria da terra se elas estão eternamente presas ao chão? Eu corro. Isso me vale toda a eternidade.

ELE É O LOBO QUE CAMINHA E FALA.
ELE É O HOMEM QUE LATE A NOITE NA MATA.
VAI PRA CASA MENINO; SE O LOBO QUE É HOMEM TE VER
ELE TE PERSEGUE, TE ENCONTRA E TE MATA.

Sangue escorre pelas minhas costas. Não sangue meu. Sangue humano. Uma linda garotinha jaz morta sobre meu lombo. Seus pequenos braços gordos pendem para os lados enquanto corro. Mas seus olhos ainda conservam o vivo azul de quando lhe corria sangue por dentro da pele, e não por fora, como agora escorre. Ela será uma refeição de grande valia ao meu enorme apetite.


Sob as folhas caídas dos cajuzeiros, escondido de meus olhos noturnos, uma boca de metal se fecha sobre minhas pernas. Eu caio, combalido, sobre o chão molhado, feridas brotam de meu corpo com o impacto e um grito me foge à boca. Eu grito em forma de uivo e meu uivo desperta os de minha Raça.

Eu me desfaço do orgulho construído ao longo de toda minha vida e imploro pela ajuda deles, meus parentes. Imploro a eles piedade. Eles choram sinceramente à lua. Choram minha perda. Eles me abandonam. Confessam não poder vir ao meu resgate. Estou só e a mercê de meus opressores.

Eles são muitos, mas eu sou sempre mais.
Eu mato pelo menos cinco deles até que consigam me trancar em uma jaula de prata.
estou ferido, ensanguentado, só e humilhado.

Alguns dias depois estou sendo exposto a vários desses pequenos homens-sem-pêlo. Eles têm medo de mim. Eles têm que ter.

SORRIA MENINO, O LOBO FOI PRESO.
ACALMA-TE MENINA, O HOMEM FOI PEGO.
ELE UIVA DE DOR. ELE CHORA DE FOME.
O LOBO ENVELHECE NA JAULA. O HOMEM MORRE SEM NOME.


quarta-feira, 25 de julho de 2007

O CIRCO - cápitulo primeiro: A MULHER-DIABO



Deixe-me apertar tua mão, Moça.
(ARRANCO MINHA PELE E ESTENDO DIANTE DE TI)
O vento que traz o Circo é o mesmo que traz a gargalhada do Diabo.
(VOCÊ CHUPA MEU SANGUE, MAS POR QUE NÃO ME MATA?)

Enfim, as farpas finais de julho fazem cair as flores pelo chão próximo ao jambeiro. O mês não tarda a findar-se.
Sete carroças velhas atravessam a cidade, enquanto o sol insiste em morrer de novo, sob o céu vermelho atrás do muro.

OFÉLIA DORME AGORA NA CARROÇA NÚMERO CINCO.

A espreita, na floresta escondida atrás de meu vilarejo, o Diabo está a tua espera e de toda a tua companhia.

POBRE OFÉLIA E O CIRCO DE TEUS HORRORES SEM FIM!

Sob as curvas de tuas pernas, tuas coxas, tuas uvas, o Diabo permanece montado sobre suas quatro patas, a tocar-te, procurando, salivando, pela entrada de tuas carnes. Ele espera retirar vinho de dentro de ti, pois o Diabo sente sede.

Ofélia, agora mulher de poucas falas, dá ao Diabo sempre tudo, tudo que ele pede. Eu peço apenas que ela sorria comigo. Mas Ofélia prefere caminhar ao lado dele. cavalgando por seus chifres-amarelo-arranhados. Espetando-se em seus pelos de Bode-Preto.

Na noite que se segue, o Circo de Teus Horrores sem Fim! está a estabelecer-se no quintal descampado desta Cidade-Porto, à sombra das palmeiras podres do prefeito.
O horror da novidade é tudo que eles trazem até mim, que fujo, corto, cago, corro.
Ofélia me oferece uma canção em troca de meu Coração (Vazio).

Chora então, por não ver a lua naquela noite, Dona Rosa, com pés-de-porco.
Choro eu, lagrimas-de-vento. Não morro hoje. Não morro moço.

Deixe-me apertar tuas coxas, hoje ao menos, Moça. Ofélia.
(ARRANCO-ME OS CABELOS E OS ENGULO SEM QUE ME VEJA)
Meu amor por ti é a sede do calor do inferno.
(ESCOLHEU BRILHAR EM OUTRO CÉU, MEU BEM, MAS POR QUE, POR QUE, NÃO BRILHOU PRA MIM?)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

O Vômito!

Todos os dias seu vômito escorre até o Rio Amazônas.
Toda a dor, angústia e frustração que corrói sua alma, e que você engole ao decorrer de cada longo dia, e posteriormente excreta, com violência, ao desabar de cada curta noite de seu repouso, ganha vida, e escorre até o Rio, atravessando toda a cidade e juntando-se as excretas de seus pais, seus amigos, e todas as pessoas que você conhece.


Você chega após um dia de indesejada labuta. Um dia cansativo em sua vida inúltil. Distrai-se no circo. Distrai-se com livros tolos (se é que ainda se conserva este hábito). Distrai-se com sexo. Toma sopa e bebe um chá quente. vai até a janela e VOMITA JUNTO COM TODOS OS OUTROS CORAÇÕES VAZIOS DESTA CIDADE.

Seu vômito, assim como o de todos os outros habitantes deste pequeno lugar, aglutina-se na Praça Central, durante a fria madrugada, sob os olhos traiçoeiros da estátua rachada de Edimond Duraert, o capitão-fundador-esquecido desta Cidade-Porto. As excreções ambulantes aglutinam-se primeiramente em um Parlamento Vomitorial de Extrema Urgência (P.V.E.U.) para discutir sobre sua existência vomitêsca . Após as solenidades, todos eles escorrem vagarosamente até a borda sudoeste do Rio Amazônas. Dançando-se aos rebuliços, retraindo-se ou expandindo-se em direções opostas, aos poucos a Massa Vomitorante dilui-se junto às barrentas águas do extenso Rio. Eles penetram na terra. Eles encontram o encanamento da Cidade. Eles percorrem o subterrâneo desesperandamente ao SEU encontro.

Você acorda após uma noite de sono inúltil em sua vida descartável. O sol grita ordens desesperadas sobre sua eterna e odiosa rotina: o trabalho o chama (você precisa sustentar a vida que NÃO gosta, do jeito que você NÃO planejou). Você banha-se nas águas que jorram do chuveiro. Você bebe a água que provêm de sua torneira. Sem perceBER, VOCÊ ENGOLE DE NOVO TODO O VÔMITO DA NOITE ANTERIOR.

Sendo assim, você mantém o ciclo da eterna inércia que sustenta a vida desta Cidade-Porto. VOCÊ MANTÉM O CICLO DA ETERNA DOR QUE SUSTENTA SEU CORAÇÃO VAZIO.

fim do 1º ato

segunda-feira, 4 de junho de 2007

NU E SOZINHO, PERDIDO NO DESERTO...

Aristeu, no Deserto Negro em que se perdeu ao findar dos vinte anos (tentava fuga às intervenções malignas de Aurípede, o Sultão da Corte Pálida, que lhe jurara morte após descobri-lo como amante secreto de sua esposa mais nova, Mira Miskrha) encontrou-me no decorrer da quinta noite, enquanto atormentava-se perdido sob o ventar seco, estalando às dunas sob o céu de fria escuridão.


Poucos conhecem realmente a experiência de perder-se no Deserto Negro (não se deve acreditar nas tolas fantasias colonialistas inglesas). O zumbir do vento dá voz à areia, que lhe propõe tolas charadas em idiomas da Velha Cidade, confundi-lhe a direção e, acredite, faz com que o brilhar da estrela mais forte desapareça por horas à fio, tornando impossível manter correto o caminho para salvar-se do Deserto, transformando-o em eterno escravo de suas adivinhas macabras.
Sim, o Deserto Negro alimenta-se da loucura dos viajantes.


Aristeu achou-me nas raízes de um cacto morto, após horas de deseperado cavucar aos pés da planta, procurando a resposta para uma das adivinhas sem nexo da voz da areia. Não achou a resposta. Em compensação, achou-me: a erva-de-cheiro-rosado.


Poucos são os que realmente conhecem-me, e mesmo estes restringem-se mais ainda aos poucos seres humanos que sobreviveram à viagem maldita pelo Deserto Negro. Aristeu foi um deles.


Ao encara-me, sentindo meu cheiro que possui cor, Aristeu escutou minha voz que lhe susurrava: "coma-me"; "beba-me"; "sacia-te em mim". Aristeu entendeu-me como poucos o fazem: percebeu que, ao afogar-se invariávelmente no mar da loucura, só se mantem a sanidade ao aceitar a solidão de uma Nau de Loucos - duvidar eternamente de si e, ainda assim, ater-se à mente, mesmo que essa já não lhe mereça mais confiança. Agarrar-se a loucura, quando esta lhe é irreversível, é manter-se são (foi o que disse o árabe louco Abdul, o Homem, antes de morrer sufocado pelo calor e pela areia, e suas palavras ganharam forma no deserto).


Aristeu pôs-me à boca e mastigou-me. Deleitou-se deitado na areia, que já não lhe fazia mais charada alguma. Enguliu-me e, por fim, sentindo o perfume cor-de-rosa queimar-lhe a alma, o estômago e as pontas dos dedos que me tocavam, transmutou-se em um exército de borboletas negras que, tal qual a força de uma tempestade do deserto, partiu em um enxame, cantando no intruncado idioma das antigas borboletas negras do sul:

Fui louco como fui teu
Mira, ele fugiu por apaixonar-se por ti
Chama-se negro agora,
Chamou-se outrora Aristeu


Entoado pela nuvem de borboletas de asas negras, essa canção tornou-se um hino de guerra nos exécitos borboléticos alguns séculos depois; neste instante no entanto, no passado triste de loucura voadora de Aristeu, era um grito desesperado em busca de saída à vastidão do Deserto Negro, era o emblema da maldição cega da areia e o bastião da loucura/sã que as borboletas negras ontentavam.

Hoje, em algum lugar do mundo, uma boca se abre e a última borboleta negra sobrevivente se atira, solitária, em meio à salivas e dentes. A boca pertence a mulher, e a mulher está grávida. A borboleta arrasta-se até o ventre, engole o feto novo e toma seu lugar, ganhando forma humana. Aristeu sobreviveu à loucura. Aristeu renascerá.

domingo, 3 de junho de 2007

(silêncio)

Ela diz:

(não se deixe perceber... ele está no cômodo próximo. por favor jovem moço, ajude-me a desamarrar estas cordas grossas que me prendem pernas e braços. sim, ele está no cômodo ao lado, e a qualquer momento pode entrar por aquela porta. ele pode matá-lo. sim jovem moço, não duvide disso. ajuda-me, lhe imploro.)
(todas as noites ele abre aquela porta próxima ao abajour esverdeado, arranca-me o lençol, levanta-me o pijama branco - na verdade, após todos esses meses, encardidamente fedido - e, montando ferozmente sobre mim, apoiando-se descuidado sobre meu pequeno tronco, roçando seus pêlos em meu rosto e agarrando-me a face com as unhas, suga-me até a última gota de beleza, suga-me os cabelos de negros caracóis, suga-me os desejos da juventude nunca vivida. nada mais faço além de gemer e chorar. nada mais me resta. render-me ao silêncio daqueles olhos que nunca me encaram. daquele rosto que nunca permite desvencilhar-se das penumbras pálidas deste quarto escuro. deste medo eterno que nunca me permite saber o que representa este ritual terrível, esta dor sem cheiro. prendo-me ao teu socorro jovem moço. ajuda-me.)
(juro-lhe já não recordar meu próprio rosto frente ao espelho. juro-lhe. já não reconheço minha voz ao sair da boca. estes tolos gemidos já não são meus. pertencem a uma comcubina qualquer, perdida em um pesadelo de noites árabes. vivo com a morte entalada na garganta. sufocada pela ante-vida deste quarto imundo e sem cor. pela última vez, ajuda-me...)

Ouvindo este último sussurro, implorando por ajuda, saído daquela pequena boca (não mais que quinze anos, pensava ele) o jovem moço arrancou-lhe o lençol, levantou-lhe o pijama branco - na verdade encardidamente fedido - montou sobre ela e sugou-lhe a beleza, sugou-lhe os desejos, como muitos fizeram antes, e muitos outros fariam depois.

quinta-feira, 17 de maio de 2007

A foto Dela

Esta pequena foto acima, coleguinhas, é a foto dela:
Dela.
Dela.
Ela.
Francis F.:meu amor; por ti meus sonhos saltam à janela.
Ela.
Janela.
Dela.
O padre, gordo e feio, maldisse meu amor por ela, tratando-o por loucura, ontem, na capela.
Amor.
Por.
Ela.
Não lhe posso permitir tal injúria, minha flor. Masturbo-me à sua espera.
À espera.
Dela.
Ela.

sábado, 12 de maio de 2007

O Detestável Homem-Quebra-Cabeças!

Seu queixo caiu dentro do prato da sopa durante o jantar. Você fingiu indiferença durante o ocorrido, mas, de fato, chorou sozinho no banheiro após o chá. Sua noiva, chocada, abandonou-o, encerrando abruptamente dezenove meses de relacionamento (casariam-se ao findar deste ano, sob às bençãos de Vossa Majestade). Você trancou-se em seu quarto e despedaçou-se sozinho aos poucos: seu nariz depositou-se sobre a cômoda; sua boca perdeu-se embaixo da cama; suas pernas espalharam-se pelo chão; seus braços e seu tronco penduraram-se no cabide do armário esquerdo; seu cabelo jaz no tapete; seu pênis, abandonado e indesejado naquele cômodo frio, saltou pela janela e refugiou-se nos esgotos desta Cidade-Porto, em meio à ratos canibais e cadáveres semi-putridos.
Você ainda aguarda por mãos que o montem uma vez mais.

sábado, 5 de maio de 2007

PACO PICO PIEDRA

O jovem Paco Pico Piedra estava vivo.
Ele cuspiu o cigarro de sua boca e posicionou suas mãos próximas à cintura. Seu oponente estava dezessete metros à sua frente. Era meio-dia e uma criança pequena chorava incessantemente em alguma das casas esverdeadas atrás de Paco, talvez devido ao calor, talvez devido à fome.
O suor tomava suas costas e suas mãos, misturando-se a poeira soprada pelo vento quente. Ele podia diferenciar claramente o fedor de suas calças e de sua camisa branca-quadriculada. Isso nunca o incomodara antes e ele não sabia porque o incomodava agora. Seus dedos massageavam o ar calmamente.
Talvez fosse o estalar de um galho-seco, talvez fosse o bater das asas de um abutre contra a força do sol; não se sabe ao certo; mas o fato é que um leve ruído fez Paco sobressaltar-se, disparando seu coração e tornando seu suor frio. Paco levou suas mãos de encontro às pistolas em seu cinto.
Ao sacá-las, rapidamente prostrando seu dedo indicador ao gatilho, Paco sentiu suas pernas tremerem e desequilibrarem-se, até que sua cintura lhe pareceu solta no ar e ele desabou-se, enfim,ao chão.
Pendendo para a esquerda, Paco caiu fortemente com os ombros no chão, sentindo a areia tocar seu rosto e invadir sua boca. Suas pistolas voaram para longe de seus dedos e Paco enfim notou a pequena cachoeira negra de sangue que jorrava insistentemente de seu peito aberto, misturando-se ao fedor de sua camisa branca-quadriculada.
Paco sentiu sono, mas seus olhos estalaram abertos em uníssono e ele sambou junto à fantasmas Vikings na noite da crucificação; ele bebeu o vinho que jorrava das Formações Rochosas ao Sul da França; ele desvirginou dezessete moças mortas em uma estalagem caribenha numa só noite; ele encontrou Deus, pediu-lhe perdão, e acertou-lhe quatro tiros no rosto, roubando sua coroa divina e trocando-a por comida em um bar próximo.
O jovem Paco Pico Piedra estava morto.

domingo, 29 de abril de 2007

O Jardim das Flores Humanas

Era um Jardim feito de pessoas. Eram pessoas feitas de flores. Eram flores que formavam um imenso Jardim. Se você um dia disser que este Jardim existe, cortarão sua língua e arrancarão seus dedos. Se você um dia encontrar este Jardim, ficará louco. Mas se você não acreditar todos os dias na existência do Jardim, seu corpo murchará e sua alma definhará em pó.
Eu, quando ainda era jovem e ainda possuia coração pulsante, encontrei este Jardim e por ele caminhei, sentindo os pequenos corpos apetalados contorcendo-se e quebrando-se sob meus pés, soltando gritos de dor que para mim não passavam de doces sussurros.
Caminhei calmamente, pé ante pé, fumando um charuto novo, derrubando as cinzas recém queimadas sob os pequenos homens feitos de flores (ou flores feitas de homens, mas você já entendeu...). Após meia hora de caminhada pelo Jardim, sentei-me, o sol se punha, alaranjado aos fins da vista: rosa-vermelho-estático-pitoresco. Nos últimos minutos do entardecer as flores humanas tornaram-se rijas, ergueram seus rostos aos céus e cantaram, cada uma das centenas de milhares de flores, uma música diferente e incompreensível, que, misteriosamente, uniam-se e formavam uma única canção, cantada no idioma esquecido.
Confesso que tentei cantar junto às flores do Jardim; compreendi o que sua canção dizia, e você, se estivesse lá, talvez também compreendesse: falava sobre o tempo, só e simplesmente o tempo; mas tornei-me mudo, nenhum som saiu de minha boca.
Dez minutos se passaram e a canção acabou, o sol havia sumido, as flores fecharam-se e dormiram e o jardim ficou pálido e sombrio.

Acendi outro charuto e retornei, pisoteando as flores com ainda mais força. Cheguei até o enorme portão cinza, voltei-me e cuspi, enciumado, nas flores mais próximas. Fui embora. Desejei esquecer o pequeno caminho de terra que me levou até lá, próximo a árvore oca na densa floresta atrás da Vila, exatamente como no mapa de minha avó. Desejei esquecer o enorme portão e o olhar curioso de todas as pequenas flores humanas em seu Jardim esquecido. E esqueci. Esqueço-me cada dia um pouco mais. Mas tornei-me mudo para sempre.


sábado, 28 de abril de 2007

Seja Bem-Vindo ao Mixomatosis: A Cidade-Porto dos Corações Vazios.


Esqueça as latas de refrigerante que engolem a calçada lá fora. Esqueça os bêbados sem alma e os padres sem sêmen. Entre no Teatro.
Atravesse a cortina vermelha e sente-se na poltrona com sua cor predileta. Estique as pernas e saboreie um sorvete quente. Coma, converse e entretenha-se até as luzes se apagarem. opa! Apagaram-se.

Agora faça silêncio:



(a cacofonia irrompe e a ópera começa - o escritor senta-se ao centro do palco, puxa sua pena de ponta prateada e rabisca as primeiras palavras - Deus morre e o universo é criado, a maçã de Eva apodrece em nosso estômago e nascem as cidades, nasce a Rainha, surge o pequeno Vilarejo onde sempre vivi, , eu morro, você nasce - e o escrito prossegue, atroz e certeiro, a ópera suicida da cidade-porto dos corações vazios)
(e a ópera não tem fim - embora o escritor, outrora jovem e entusiasmado, agora têm seus cabelos e barba já brancos, lhe caindo sobre o peito; sua pena ruma torta á derradeira linha, cansada, pré-sênil; enjaulado e faminto, sem família, sem mulheres e sem dinheiro, o escritor prossegue. Prossegue morrendo. Morrendo por todos nós.)

Goze, sorria e satisfaça-se ( afinal sua triste vida, sua lenta caminhada rumo à obesidade, à impotência e ao desagrado solitário jamais superará um só ato desta Ópera Suicida). Complete-se durante o espetáculo. Inveje o escritor quando jovem: por seu gigarro de fumaça espessa e por seu sorriso de canto de boca que provoca suspiro nas donzelas. Inveje-o quando velho: ainda que mal trajado - sem linho? que horror! - ele ainda conserva algo daquele olhar flamejante de outrora. Conspire sua morte com os demais espectadores. Espere o momento certo para cortá-lo, dividí-lo e devorá-lo ( e, posteriormente, defecá-lo no bidê).

(Oh! perdoe-me por esta longa intromissão senhor, não pretendia distraí-lo deste magnífico espetáculo com minhas tolas interpretações. Ignore minha presença. Ignore este pequeno mundo. Contemple a Ópera.)

DEUS SALVE A RAINHA!

Impresso na gráfica dos Judeus-Sem-Pênis.