Aristeu, no Deserto Negro em que se perdeu ao findar dos vinte anos (tentava fuga às intervenções malignas de Aurípede, o Sultão da Corte Pálida, que lhe jurara morte após descobri-lo como amante secreto de sua esposa mais nova, Mira Miskrha) encontrou-me no decorrer da quinta noite, enquanto atormentava-se perdido sob o ventar seco, estalando às dunas sob o céu de fria escuridão.
Poucos conhecem realmente a experiência de perder-se no Deserto Negro (não se deve acreditar nas tolas fantasias colonialistas inglesas). O zumbir do vento dá voz à areia, que lhe propõe tolas charadas em idiomas da Velha Cidade, confundi-lhe a direção e, acredite, faz com que o brilhar da estrela mais forte desapareça por horas à fio, tornando impossível manter correto o caminho para salvar-se do Deserto, transformando-o em eterno escravo de suas adivinhas macabras.
Sim, o Deserto Negro alimenta-se da loucura dos viajantes.
Aristeu achou-me nas raízes de um cacto morto, após horas de deseperado cavucar aos pés da planta, procurando a resposta para uma das adivinhas sem nexo da voz da areia. Não achou a resposta. Em compensação, achou-me: a erva-de-cheiro-rosado.
Poucos são os que realmente conhecem-me, e mesmo estes restringem-se mais ainda aos poucos seres humanos que sobreviveram à viagem maldita pelo Deserto Negro. Aristeu foi um deles.
Ao encara-me, sentindo meu cheiro que possui cor, Aristeu escutou minha voz que lhe susurrava: "coma-me"; "beba-me"; "sacia-te em mim". Aristeu entendeu-me como poucos o fazem: percebeu que, ao afogar-se invariávelmente no mar da loucura, só se mantem a sanidade ao aceitar a solidão de uma Nau de Loucos - duvidar eternamente de si e, ainda assim, ater-se à mente, mesmo que essa já não lhe mereça mais confiança. Agarrar-se a loucura, quando esta lhe é irreversível, é manter-se são (foi o que disse o árabe louco Abdul, o Homem, antes de morrer sufocado pelo calor e pela areia, e suas palavras ganharam forma no deserto).
Aristeu pôs-me à boca e mastigou-me. Deleitou-se deitado na areia, que já não lhe fazia mais charada alguma. Enguliu-me e, por fim, sentindo o perfume cor-de-rosa queimar-lhe a alma, o estômago e as pontas dos dedos que me tocavam, transmutou-se em um exército de borboletas negras que, tal qual a força de uma tempestade do deserto, partiu em um enxame, cantando no intruncado idioma das antigas borboletas negras do sul:
Fui louco como fui teu
Mira, ele fugiu por apaixonar-se por ti
Chama-se negro agora,
Chamou-se outrora Aristeu
Entoado pela nuvem de borboletas de asas negras, essa canção tornou-se um hino de guerra nos exécitos borboléticos alguns séculos depois; neste instante no entanto, no passado triste de loucura voadora de Aristeu, era um grito desesperado em busca de saída à vastidão do Deserto Negro, era o emblema da maldição cega da areia e o bastião da loucura/sã que as borboletas negras ontentavam.
Hoje, em algum lugar do mundo, uma boca se abre e a última borboleta negra sobrevivente se atira, solitária, em meio à salivas e dentes. A boca pertence a mulher, e a mulher está grávida. A borboleta arrasta-se até o ventre, engole o feto novo e toma seu lugar, ganhando forma humana. Aristeu sobreviveu à loucura. Aristeu renascerá.
Hoje, em algum lugar do mundo, uma boca se abre e a última borboleta negra sobrevivente se atira, solitária, em meio à salivas e dentes. A boca pertence a mulher, e a mulher está grávida. A borboleta arrasta-se até o ventre, engole o feto novo e toma seu lugar, ganhando forma humana. Aristeu sobreviveu à loucura. Aristeu renascerá.