LEIA-ME:

Síndrome de Proteus

Abarcar o mundo ou abraçar o mar.

quinta-feira, 29 de março de 2012

GAROTO ÁGUA

Os cacos de meus sentimentos chovem.

Chovem.
Chovem dentro da sua cabeça de vidro.


Pernas de cavalo.
Imploram por tua garganta secreta.
Teu buraco de sangue.

Eu penso que ela pensa que eu penso que estou errado, mas será que ela pensa que eu penso que ela pensa que eu não me importo?

É difícil pensar com a cabeça cheia de fumaça.

Todas as garotas sabem que todos os rapazes sabem que todas as garotas sabem que são estúpidas.
Este não é um mundo para mulheres.
Este é um mundo para homens.
Um mundo para homens.

Não é um mundo para mim.

Sempre que a minha masculinidade escorre eu desejo morrer. Morrer apedrejado em uma cruz de merda, com meu pênis cortado, aberto e pregado numa cruz de ouro.
E minha masculinidade escorre uma,
duas,
três vezes.
Ela escorre quatro,
cinco,
seis vezes.

Ela escorre.

E eu sou feito de água. Um garoto de água. um garoto afogado no fundo do rio. Danço com as sereias de Março e alimento os peixes com meus olhos.

Sou um garoto de água.

Minha mão enterrada no coração de seu rosto e minha vergonha esculpida nos teus olhos cerrados em um sonho de álcool por detrás do portão.

é o mais homem que posso ser.

sim, eu sei.
eu sei que você sabe que eu sei.
eu errei.


quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O ÚLTIMO VERÃO EM BERLIN


Os homens com pés de couro marcham como vespas pela Praça do Rei e eu permaneço cego.

Chegou o dia em que nossos dias morreram.

Todos os que ainda possuem juízo esconderam uma arma dentro de seus cômodos secretos e todas as velas foram jogadas no lixo. Os mortos observam atentos e nenhuma casa é segura esta noite.

Só nos resta um ao outro.

Não minto para você, pelo menos não quando falo a verdade, e em nossa última noite juntos, quando o verão em Berlin ameaçava diluir-se como água em minhas mãos trêmulas, eu lhe fui sincero.

Seus olhos negros engoliam a luz da lua, meu bem, e seus cabelos vermelhos atiçavam na terra o fogo da última estrela nua.
Você não poderia ser mais perfeita.

Penso que o fogo possui olhos em algumas ocasiões, e naquela noite a lareira nos observava com insistência.

Enquanto meus dedos dividiam teus seios quentes
Metade com os beijos da boca
Metade com as marcas dos dentes.

Eu entrei em você, minha Rainha, com o ódio que apenas o amor deseja e embora você ame como uma vadia, lhe confesso, você geme como uma garota.

Rainha do Gelo: todo o seu corpo é feito de gotas do Mar
Eu bebo suas lágrimas frias, mas jamais consigo derreter o seu olhar.


segunda-feira, 18 de julho de 2011

SOB O SOL DE PARIS

Veja como eles dançam
Sob o sol de Paris
E todas as garrafas vazias
Sussurram teu nome
- jovem meretriz -
Dona da saia mais justa
E dos seios mais lisos
Musa da paixão reprimida
Dona do eterno sorriso

Miguel vendeu dois quadros
Por um preço abaixo do valor
Não creio que será suficiente
Para pagar as dívidas de seu antigo tutor
Enquanto os dias passam
Pelas frestas da porta
E pelas dobras da janela
Miguel deposita sua alegria
Nos espaços vazios da tela

Ele bebe uma canção antiga
Ele canta uma garrafa nova de cidra

"Eu escolhi teu rosto, meu amor,
E o guardei para sempre
Quase como se minha mente fosse
Um ventre"

quinta-feira, 30 de junho de 2011

JESUS DE MADEIRA

O mar salgado do Cairo esconde um segredo entre as dunas vazias e o vento selvagem: Jesus pendurado na cruz ressucitou como um navio de madeira maciça
para atravessar todo o mar e dividir toda a brisa.

Para naufragar entre os homens de grande cobiça.

Pois em seus sonhos Jesus desejou tornar-se um marinheiro
e não um cruscifixo,
cuja solidão seria partilhada entre as gaivotas e os peixes,

 E em sua infinita tristeza, Jesus percebeu que somente os afogados compreendiam seu amor
inchados e sem face
no fundo do mar Egeu
Os homens mortos cujos lábios cospem sal e entoam canções de despedida para as esposas, as putas e os portos distantes.

"E Jesus se tornou um marinheiro quando andou sobre a água"

Quando sua dor não for demasiada
Jesus de Madeira pode ouvi-los cantando, uivando à lua, a doce canção do marinheiro morto:

"O marinheiro sem návio procura pela sereia em um gole de rum
Mas a sereia só ama o mar, e não procura marinheiro algum"

E se nós pudessemos ir a todos os portos
você iria comigo?
E se nós pudessemos beber em todos os copos
você ainda me amaria?
E se a solidão fizer parte de mim
Nós ainda poderíamos viver juntos para sempre?
E se nos fosse oferecida uma viagem dentro de Jesus de Madeira, e se o mar nos levasse até um lugar fora de todos os mapas, longe de todos os cartões de crédito e fora de todos os quartos seguros, você iria?
Você iria comigo?
E nós poderíamos viver juntos para sempre?

Como duas estátuas de madeira navegando sobre o mar salgado

domingo, 29 de maio de 2011

LAURA NO FUNDO DO COPO

Eu li seu nome no fundo de um copo de whisky, meu bem, e bebi tudo de uma só vez até chegar a primeira letra.

L.

Uma canção antiga reclama suave enquanto meus pés tropeçam em si no caminho que leva ao banheiro. O letreiro refletido no espelho guia meus olhos em meio a fumaça e eu leio seus contornos de neon escritos ao avesso:

OFÉLIA

é o nome do bar

Nossos olhos se tocam no escuro e dançam.

Minha mente toca seus seios.

No hemisfério direito do meu cérebro.

Na ruela atrás do muro, meus punhos inchados deslocam o nariz de alguém. Há sangue em meu terno. Eu retiro a arma do coldre e atiro no espaço vazio entre os dois olhos.

Os dois passaportes correm dos dedos dele para os meus.

Agora ambos são seus, meu amor.

L.

Talvez depois de mais alguns copos eu descubra a letra seguinte.

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

SEM TÍTULO


escrito por Igor Reale e Raoni Holanda
CAPÍTULO III

Complexo de Agemir

Existem bares em praticamente todas as esquinas da cidade de Macapá, e em todos eles é comum encontrar duas ou três pessoas mal-encaradas.
Esse bar, no entanto, era uma exceção.
Nele, TODAS as pessoas eram mal-encaradas.
Desde a garçonete japonesa.
Passando pelo casal de namorados.
Até chegar ao gordo suado e nervoso sentado na mesa ao fundo.

Surpreendentemente, o gordo suado e nervoso sentando na mesa ao fundo é Agemir, que observa o casal de namorados com doentia curiosidade.
Mais surpreendente ainda é notar que o casal de namorados é na verdade, “Torre de Pisa”, a pequena vizinha pela qual Agemir é secretamente apaixonado, e seu atlético e imbecil namorado, cujo nome ninguém sabia realmente.
Sem perceber mais ninguém a não ser os dois, Agemir se assusta ao notar a garçonete do estabelecimento postada ao seu lado, uma esquisita adolescente japonesa que o observa com desdém.
A moça lhe serve uma bebida e vira de costas com pressa, quando Agemir levanta a voz e diz:
- Com licença senhora, este papel estava na minha bebida.
- E tu leu o que tava escrito nele?
- Sei lá! Algo sobre o abismo me olhar? Bem, eu li... Mas tava todo molhado (tipo, dentro do copo).
- Quer saber duma coisa? – reclama a garçonete, impaciente.

SOC!
A garçonete japonesa supreendentemente esbofeteia o rosto de Agemir com força e diz:
- PORRA! Eu passo o dia todo recortando essa merda! O dia todo! E nenhum desses filhos-da-puta, lê! Ninguém!
Todo mundo se faz de cego nessa merda de bar, bando de...

E assim ela vai embora, e deixa Agemir sentado com cara de tacho.

Ainda em choque, Agemir nota um estranho homem parado, em pé, encarando-o com ódio.
- Que foi? – diz Agemir, fraquejando.
- Eu vim eliminar os servos de satã! – diz o homem, e levanta sua camisa de forma a deixar visível o enorme cabo da faca pendurada em sua cintura.
- Que? – balbucia Agemir, por reflexo - Desculpa, mas hoje tô sem trocado...
- Que palavras são essas? Por acaso tu és um deles? Há! Eu devia saber! MALIGNO!!!
Brada o homem com ódio, e o hálito de cachaça e pedras de crack invade as narinas de Agemir.
Com a agilidade e destreza dignas de um samurai feudal, o estranho homem saca o facão e o põe no pescoço de Agemir com violência.
Agora, nosso improvável herói parece estar em sérios apuros!
Conseguirá Agemir sobreviver desta vez?

Enquanto isso:

Kimoto é o dono do movimentado bar.
De origem japonesa, o recatado senhor chegou ao Amapá há cerca de 40 anos.
Durante esse tempo tudo o que Kimoto realmente desejou para si foi prover o sustento de sua amada filha e ganhar a vida com honestidade.
No entanto, o único lugar em que Kimoto conseguiu montar seu estabelecimento comercial e erguer sua própria residência foi num bairro repleto de putas e bandidos.
Mas o pobre Kimoto tinha um sonho, e continuaria tendo esperanças de realizá-lo mesmo nos piores momentos.
Por isso pedia para sua filha mal-criada recortar mensagens bonitas de incentivo e colocá-las discretamente nos copos dos clientes, para que todos se sentissem felizes.
Kimoto pagava seus impostos com orgulho e freqüentava a igreja todos os domingos, na missa das 7 horas em ponto.

O retorno veio hoje.
Esta manhã finalmente o banco ligou. O financiamento de sua nova casa em um bairro nobre da cidade (com espaço para abrir um bar muito maior e melhor) havia sido aprovado.
Em breve Kimoto sairia dali.
 DEUS EXISTE 

Naquele mesmo instante, no entanto, Kimoto percebeu algo errado acontecendo em seu estabelecimento respeitável.
Um casal de adolescentes mal-encarados beijava-se obscenamente em uma das mesas.
A menina com certeza é menor de idade.
Kimoto irá expulsá-los.

Ao mesmo tempo, o rapaz da xérox finalmente encontra o bar maltrapilho onde havia marcado o encontro com Agemir. Despreocupado, ele caminha vagarosamente por entre as mesas até perceber Agemir sentado ao fundo, escondido, abordado de forma incomum por um homem estranho que lhe pressiona uma enorme faca contra o pescoço.
- Ei Agemir, começou! Catei uma pedra com um formato engraçado lá fora. Toma pra ti-- Ei, que porra é essa?!?

Ao encarar o homem com o facão nas mãos, o rapaz da xérox imediatamente o reconhece e exclama, em voz alta:
- Fogueira Santa! E aí véio, como tu anda?
Os dois abraçam-se como velhos amigos.
- Na mesma. Tu conheces esse figura aqui?
- É claro! É claro! Ele é FODA!
- Quem?
- FODA!
- como assim FODA?
- Tô te falando, o próprio FODA. Enviado de Gvazir 5 para a Terra.

BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O CONCEITO DE FODA SEGUNDO GVAZIR 5:

Edimir é um rapaz não muito bonito nem muito feio. Suas notas na escola eram medianas e ele era conhecido por falar sempre moderadamente, nem mais nem menos, nem muito nem pouco.
Edimir nasceu prematuro. Quando ainda estava em gestação, sua mãe foi atropelada por um caminhão de 30 metros que carregava árvores. Sua cabeça foi esmagada.
No entanto, Edimir sobreviveu milagrosamente e foi retirado do ventre de sua falecida mãe no hospital, onde permaneceu algumas semanas em uma incubadora.
Aos 15 anos Edimir fugiu uma única vez de sua casa durante a madrugada para experimentar maconha com alguns de seus colegas de escola.
Ele estava muito nervoso e inseguro e tinha medo de mentir para sua família (pai, madrasta e dois meio-irmãos), mas prosseguiu mesmo assim.
Naquela noite, um satélite da NASA saiu de órbita por acidente e desabou, coincidentemente, sobre a casa de Edimir, matando instantaneamente todos lá dentro.
Edimir foi reembolsado com um cheque de 50 milhões de dólares pelo governo americano. Ele nunca mais teve que trabalhar ou mesmo se preocupar com dinheiro durante o resto de sua vida.
Aos 23 anos Edimir namorava a garota mais linda da cidade. Ela tinha sido eleita Miss Cupuaçu Dourado em uma festa local e estava iniciando uma carreira de modelo (já havia estrelado um comercial de cerveja).
Na noite em que Edimir pediria sua mão em casamento, a jovem morreu eletrocutada acidentalmente por um barbeador elétrico enquanto depilava suas pernas.
No dia seguinte, durante o velório, Edimir conheceu Cíntia, uma prima de segundo grau de sua falecida namorada. Eles se apaixonaram imediatamente.
Edimir descobriu então que Cíntia era seu verdadeiro amor, sua alma gêmea. Eles se casaram após 2 anos de um intenso namoro.
Hoje, Edimir vive despreocupado em um pequeno vilarejo na França onde montou uma produtora de filmes independentes e apóia jovens e talentosos cineastas.
Edimir é FODA.

De volta à trama...
Ao constatar as palavras do rapaz da xérox, Fogueira Santa ajoelha-se perante Agemir em sinal de reverência e chora ao beijar suas mãos.
- Me desculpe, ó grande enviado. – diz em meio à lagrimas.
- Que significa isso?
- Existem outros com diferentes funções por aí, Agemir. – responde o rapaz, - Agora Fogueira Santa nos ajudará em nossa missão e coisa e tal.

Enquanto isso, do outro lado do bar, Kimoto e Torre de Pisa iniciam uma exaltada discussão.
Kimoto só quer fazer a coisa certa.
Torre de Pisa só quer se divertir um pouco.
E seu namorado... bem...

...Ninguém sabe ao certo o que quer o namorado de Torre de Pisa. Ninguém, nem mesmo Torre, sabe sequer o nome do jovem (em compensação, ele também não sabe o dela).
Os dois se conheceram em uma sala de bate-papo por celular. Seu apelido era MAROMBADO_18 e é assim que todos os chamam.
Ele torce para o São Paulo F. C. e gosta de jogar basquete.
Aos 14 anos começou a se aplicar Mass Way, um fortificante de cavalo que o deixava musculoso e o tornou popular entre as garotas.
Alguns meses depois ele perdeu a virgindade. MAROMBADO_18 não sabe ao certo o que aconteceu, mas, depois de descobrir o sexo (ele gozou mais rápido do que você poderia contar) ele nunca mais conseguiu diferenciar nomes e rostos de nenhuma das pessoas que conhecia.
Todos tinham uma nuvem cinzenta na face.
Todos tinham a voz parecida.
Seus amigos.
Sua família.
Sua namorada.
E todos os outros naquele bar.
MAROMBADO_18 se sentia bastante confuso quanto a tudo. Na verdade, pensar era algo difícil para ele.

Em meio à enorme confusão gerada por Torre de Pisa e Kimoto, Fogueira Santa desvincula-se de Agemir e do rapaz da xérox sem ser percebido e esgueira-se cautelosamente por entre as mesas e cadeiras do bar. Em silêncio, suas mãos procuram pela arma em sua cintura e, delicadamente, degola Kimoto com a navalha afiada de sua faca, para a surpresa de todos no bar.

O sangue jorra como água.

Fogueira Santa matou sua mulher e seus dois filhos a pauladas na noite de natal do ano passado.
Eles não serviam a Deus da maneira certa.
Sua mulher pintava o próprio rosto com aqueles tubos feios e seus filhos ouviam músicas de satã nas rádios todos os dias.
Fogueira Santa sente a falta deles algumas vezes.
Mas agora, ele finalmente encontrou Agemir.
Esse foi o sinal de Deus.
E a voz divina pede para que ele inicie a purificação.
Dessa forma, Fogueira ergue um enorme sorriso em seu rosto e, impulsionado pelas drogas em seu organismo, ataca e mata todos as pessoas no bar.

Agemir observa nervoso.
O rapaz da xérox apenas fuma.
A garçonete japonesa, alheia a tudo, conta suas gorjetas (ela vai poder comprar sua linda lingerie, finalmente).
Torre de Pisa corre desesperadamente para fora do bar.
Isso a salva da morte.
Infelizmente, MAROMBADO_18, menos inteligente, corre desesperadamente para dentro do bar.
Isso o condena a morte.
E Kimoto é mandado direto para o inferno.

Em desespero, MAROMBADO_18 se esconde dentro do banheiro masculino.
Agemir o segue.
Em todo o mundo estranhos eventos começam a ocorrer simultaneamente.
Um exemplo destes bizarros fenômenos acontece na Índia, quando Ghandi renasce como uma barata e acaba, tristemente, esmagado por pés que não o notam.
MAROMBADO_18 está encolhido ao lado da privada.
Ele chora.
Em algum lugar no Amapá, Cabralzinho renasce como um pato. Seu pescoço é quebrado, ele é depenado e posto para cozinhar durante 10 minutos em água fervente.
Ele é cortado em pedaços pequenos.
Banhado em tucupi.
E será devorado no próximo Círio de Nazaré.
Agemir dá a primeira pancada com a enorme pedra de formato engraçado em suas mãos, cortesia do rapaz da xérox.
O crânio de MAROMBADO_18 racha ao meio e o banheiro é inundado por sangue.
Padre Cícero renasce como um cácto no sertão nordestino. Em meio a seca, seus conterrâneos o cortam e o servem como comida típica para alguns turistas irlandeses.
Sim, a fome mata.

O namorado esta morto.
Agemir sorri.
Pela primeira vez em muito, muito, MUITO tempo, Agemir sorri de verdade.

A garçonete japonesa está encolhida próxima ao cadáver de seu pai.
Ninguém a vê ali, nem mesmo Fogueira Santa.
Isso a salva da morte.
Fogueira Santa acha os pequenos pedaços de papel com mensagens otimistas espalhados pelo chão do bar e, em meio ao cruel assassinato de todos os bêbados, loucos e cornos que desperdiçavam suas horas naquele maldito lugar, os lê em voz alta.
A garconete sorri.

Agemir sai vitorioso do W.C.

Fogueira Santa impôs seu julgamento de sangue ao bar.

Todos estão mortos.

O bar está imerso em sangue.
Pela manhã, todos os jornais do país noticiarão esta carnificina sem sentido.
Todos irão cobrar das autoridades a prisão imediata dos responsáveis (Ana Maria Braga, inclusive, irá chorar em seu programa ao falar sobre o assunto).
O Amapá será noticia nacional (não é SURPREENDENTE!!!!!!).

O rapaz da xérox fica deslumbrado com o espetáculo de horror e sangue.
Ele fuma.
Mas depois lembra que isso pode matá-lo de câncer no pulmão.

Ele conseguiu.

EPÍLOGO

Agenor iniciou hoje o estágio em um órgão público.
Na maior parte do tempo, seu trabalho é tirar xérox.

Agenor é tímido e retraído e, no geral, apenas escuta enquanto os outros falam. Infelizmente, devido a isso, Agenor é obrigado a escutar todos os dias a mesma ladainha vinda do homem que tira xérox.
– Égua do clima! Lá na ‘Travessa do Baxinho’ o tempo não era assim, não... Lá cedinho eu acordava, matava um cabrito, tomava aquele leite de égua... AH... Claro, tu tens que entender que eu não tenho mais a mesma disposição dessa época. Hoje eu acordei e tinha uma nascida bem no meio do meu--
Nesse momento, uma mulher de voz esganiçada entra na sala e diz:
- Mas, seu Jucelino, o senhor já viu essa gangue de filha-da-puta aqui no jornal? Eles passaram o terçado num monte de gente dentro dum bar, menino! Mano, esse mundo ta perdido mesmo...
- HÁ! Falta de porrada dona Cacilda! Falta de porrada! Isso resolve tudo. Meu filho, um dia apareceu com um brinco aqui na orelha. Pois eu arranquei a viadagem na mesma hora que vi e fiz o moleque sangrar! E ele morreu? Que Nada! Falta de porrada! Isso que resolve toda essa...

FIM

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

SEM TÍTULO

escrito por Igor Reale e Raoni Holanda
CAPÍTULO II

A Paixão de Agemir

Por incrível que pareça, Agemir possui um pequeno interesse romântico.
Pequeno em todos os sentidos.
Agemir é platonicamente apaixonado por sua vizinha, uma ninfeta de 12 anos.
Larissa, Gabriela, Carla, um desses nomes deveria ser o seu.
“Torre de Pisa”
Era assim que os rapazes a conheciam.
Ela fumava escondida no banheiro da escola.
Falsificava carteiras de identidade para entrar em festas.
E, dentro dessas festas, Torre de Pisa fazia coisas de adulto.

Algumas vezes, às duas da manhã, Agemir fingia varrer o pátio de sua casa somente para vê-la escapar sorrateira pela janela da sala.

Ela o via e sorria, enrubescida.
Agemir sorria de volta.

Até que um dia Torre arranjou um namorado que a pegava e a trazia de carro todos os dias.
No portão em frente a sua casa, depois da aula, os dois faziam coisas de namorados.
Namorados adultos.

Agemir sentia-se uma vaca atolada na lama quando os via juntos.
Sua masculinidade definhava pelos pés.
Agemir a chamava de puta em seus pensamentos.
Uma puta com um pau entre as pernas.

E o rapaz da xérox percebeu isto.

Agora ele sabia como atrair Agemir.

- Levanta balofo! – disse o rapaz.
- Que foi? – respondeu Agemir
- Hoje nós vamos ver filme.

- O Mundo dos Leões Famintos -
– O filme –

- mas ver filme a essa hora me dá dor na vista.
- sem essa, otário.

GRAAAUUUUR!!! – gritou a TV, no volume máximo.
 “Na selva africana, os ferozes leões lutam para acasalar-se”.
“Este leão chama-se Pumba, tem 3 anos de idade e pretende relacionar-se sexualmente com a fêmea Nuala.”
“Porém, Nuala já pertence à Jafar.”

- mas o que é iss... – sussurrou Agemir.
- shhhhhhhhhhhhhhhhhh! – retrucou o rapaz da xérox.

“Começa então uma terrível luta por Nuala.”
GRAAAAAAAAUUUUUUUUURRR!!!

- Cruzes! – gritou Agemir, chocado com a carnificina animal.

“O ferimento em Jafar foi mortal. O leão desaba desfalecido.”
"A JUGULAR!"
“Com a vitória em suas mãos, a fêmea agora pertence à Pumba.”

Ao fim do vídeo, Agemir olha para o rapaz e diz:
- Isso foi totalmente desnecessário e horrível!
- Pode crê! Na verdade, tudo isso tem há ver com a lama da inconcist--
- Ridículo na verdade! Quer dizer, leões fazendo... coisas com leoas... montados um no outro...
- Não! Não! Na verdade isso foi apenas--
- Que nojo! Pensei que eles iam caçar zebras e, no final, descobrir o prazer da vida vegetariana (como no Globo Repórter).
- PORRA GORDO! Tu deve ter vindo com defeito de fábrica. Os outros messias eram mais fáceis. Que merda! Acho que meus ensinamentos foram todos em vão. Vou embora!

O rapaz da xérox levantou-se com pressa e caminhou em direção a porta sem olhar para trás. Este era o momento pelo qual Agemir ansiara durante todos os últimos dias desde que o estranho rapaz apareceu em sua vida e distorceu todo o seu mundinho tranquilo.
Agemir estaria livre de novo.
Livre e sozinho.
De novo.
E para sempre.

- ESPERA!
Gritou, de súbito, Agemir.
- Isso que você me pede é muito mais difícil do que matar um cachorro.

- Não – disse o rapaz da xérox,
- Na verdade, a única diferença é que o cachorro late.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

SEM TÍTULO


escrito por Igor Reale e Raoni Holanda

CAPITULO I

O Evangelho de Agemir

Agemir trabalha numa repartição pública (ele é novo lá).
Na maior parte do tempo, seu trabalho é tirar xérox de papeis que serão arquivados em salas diferentes.
O homem que tira xérox gosta de conversar com Agemir.
Ele costuma falar sobre seu filho: um rapaz legal, bonito e inteligente, que estuda medicina em Belém do Pará (se forma ano que vem!) e come todas as garotinhas da universidade.
Agemir odeia o homem da xérox e odeia seu filho legal – embora não o conheça.

“Égua do clima!” queixa-se o homem da xérox.
- Lá na “Travessa do Galo” o tempo não era assim... Cedinho eu acordava, lavava minha roupa, tomava leite de vaca...
- silêncio constrangedor -
- Ah... Claro, tu tem de entender, Agemir, que a gente não vive mais naquela época.
Quando era um moleque como tu eu já criava um filho, MEU filho, que agora tá a ponto de se formar (um vencedor! Um vencedor!).
Fiz uma casa grande.
Trabalho aqui na xérox por conveniência...

Entra uma mulher na sala. Zuleide é seu nome. Ela brande um jornal mal impresso em suas mãos e diz com voz estridente:
- Mas, seu Antonio, o senhor já viu esse filho-da-puta aqui no jornal que espancou a mãe?
Mano, ele bateu na mãe até ela urrar gritando pro vizinho...
Com uma repentina expressão de urgência, o homem da xérox responde:
- Falta de porrada!
Meu filho, um dia apareceu com uma tatuagem bem aqui!
Eu dei na cara dele com essa mão até ele sangrar.
E ele morreu?
Que nada! Medicina! Não menos que isso!
Olha Dona Zuleide... É falta de porrada! Isso que resolve toda essa sacanagem de moleque!

Mais tarde:
Agemir se acha gordo, inútil, feio e burro. Trancou sua faculdade porque achava seu curso (Administração de alguma coisa) uma merda e seus colegas um conjunto de bostas falantes.
Frustrado, Agemir atravessa as madrugadas sozinho em seu quarto em frente ao computador.
Teclando conversas desnecessárias no MSN.
Procurando por pessoas que não conhece no Orkut.
Acessando pornografia.

Noite passada, no entanto, algo incomum aconteceu.

Agemir viu o filho do dono da xérox sentado próximo a ele em seu quarto.
Agemir não sabe como o rapaz foi parar ali.
Os dias se passaram e o jovem continuou lá.

Durante as madrugadas o estranho rapaz tenta puxar conversa com Agemir de diferentes maneiras.
Aos poucos ele demonstra ser egoísta, falante e esnobe e parece nutrir uma estranha fixação por pedras de formatos engraçados.
Tenho minhas razões”, diz o rapaz.
Agemir não gosta nem um pouco dele.
Algo em seu sorriso lhe dá nojo.
Porém, de certa forma, Agemir sente uma estranha dependência de sua incômoda presença naquele quarto.
Costumeiramente, o rapaz dirige-se a Agemir e repete as mesmas palavras:
- Pow! Esse lugarzinho claustrofóbico não te dá uma certa ânsia de sair na rua, mijar na calçada e coisa e tal, Agemir?!
Embora permaneça em silêncio, Agemir sente-se terrivelmente ofendido ao ouvir aquilo.
Afinal, para Agemir, esse “lugarzinho claustrofóbico” é seu verdadeiro Templo.

E o Templo de Agemir é uma kit-net com um quarto-sala, uma cozinha e um banheiro apertado.
Era a coisa mais sólida que Agemir conseguira manter com sua renda.
No entanto, o aparecimento do rapaz da xérox perturbava tudo o que Agemir conhecia e se apegava.

Numa madrugada fria de dezembro o rapaz conseguiu convencer Agemir a matar um cachorro em sua vizinhança a pedradas (ele estava latindo há mais de duas horas).
De forma escandalosa, o rapaz sorriu.
- Nhéhehehe! Esse cachorrinho deve estar em êxtase.
Confuso, assustado e com sangue em suas mãos, Agemir retrucou inseguro:
- Er... Bem, não me parece. Na verdade, ele parece ter... meio que... medo de morrer.
- Claaaaro que não Agemir. A cara do totó é o que menos importa.
Olhe bem para ele! Internamente seu espírito geme de prazer. Sua alma ejacula pela boca. Embora seu corpo não saiba, ele conseguiu escapar da enorme coleira da inconsistência da lama do mundo podre e tudo mais.
Olhe como ele goza!
Ainda não convencido do contrário, Agemir discordou:
- Mas... todos os seres não buscam... sei lá... meio que... viver pra sempre?
- Ô saco! Claro que não! Porra Agemir, tu não entende nada véio. Escuta, já te falei da minha casa de verdade?
- Er... você não mora em Belém, onde estuda medicina e come as mocinhas?
- Não, tu entendeu tudo errado, cara! Isso foi um erro nos cálculos quânticos.
Na verdade eu venho do planeta Gvazir 5. Não fica tão longe daqui, mas os ônibus pra lá costumam atrasar.
Lá os peixes dourados pegam táxi! Nos anos 60, com a beatlemania e tudo o mais, os gvazianos resolveram abrir uma franquia de messias para exportação.
A parada deu tão certo que os messias se espalharam por todo o universo.
E, bem, pra falar a verdade, o messias do planeta terra é você Agemir.

Agemir sentiu uma ponta de satisfação nesse instante.
Sua vida gorda e sem graça havia encontrado um sentido.
Por cerca de dois minutos, Agemir sentiu-se feliz.

Imediatamente depois, Agemir sentiu-se louco e percebeu a idiotice de seus pensamentos.
Amigos imaginários do planeta Gvazir 5?
Apredejar cachorros até a morte?
Messias alienígena?
Esses eram os delírios mais clichês e infelizes do mundo (Agemir já havia visto centenas de filmes com este tema).
Agemir ignorou o rapaz da xérox, deu meia volta e trancou-se em seu quarto, esperando o sono chegar.

Nesse momento, o rapaz da xérox percebeu que falhara em sua função de “consciência cool” para fracassados.
Nada faria Agemir despertar da lama da inconsistência.

O rapaz olhou para si e pensou:
- Basta! Hora de ser drástico. Preciso despertar nessa baleia a fúria assassina de um Stálin!

Ele pensou.

Pensou e fumou.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

"ESTIVE NO INFERNO E ME LEMBREI DE VOCÊ"

SOBRE OS TEUS DIAS DE VÍCIO
A MOÇA DIZ:

Tua pele estremece perante a aproximação da agulha oca.
Os teus olhos contemplam o Dragão de Mil Cabeças enquanto os teus dedos tocam a seringa com ternura e afeto. Quase como uma mãe sem ventre.
Eles mentem quando pensam e falam sobre ela, pois aquilo que estala dentro de seu peito é Amor na forma mais bruta de tal modo que só ela o percebe.
Todos os seus membros chacoalham e se entortam como parte do ritual de adoração e auto-piedade ao Deus-Seringa enquanto o Dragão ancora suas unhas perpétuas nas costas da moça com afinco e desejo.
Ela sente os solavancos de desespero dentro de seus ossos e a abstinência quase pode ser tocada por suas mãos.

Isso não é um vício. Isso é amor.

Quando a agulha toca o seu corpo a moça pode sentir a maciez dos lábios de uma criança morta enrijecendo seus pêlos e esvaindo sua libído. Sim, isso é amor. Um feto agoniza em seus braços e uma canção toca em seu sexo.
O Dragão lhe oferece um beijo doce, mas a seringa cobra um preço amargo demais por suas dívidas aveludadas. Algo se esvai de sua pele enquanto o seu amor é suprido.
É uma espécie de retribuição, ela pensa.
Afinal, Deus sempre foi um ser egoísta e manipulador que anseia pelos olhares de todos a todo o momento, para que dirijam-se sempre para si.
Sim, é uma espécie de retribuição.

Pois o amor tem um preço. Sempre tem um preço. Sempre. E sempre cobra mais a cada pequena dose de sua benção pictórica, até o dia em que a moça pereça nua e inúltil dentro de um quarto escuro recheado com os órgãos internos de sua repressão materna auto-contida e estilhaçada sob seus pulsos rasgados.
E o Dragão se delicia e se contorce em solavancos de amor ao ouvir o seu sussurro.
A moça o sente dentro de sua coluna como um verme febril, girando e gemendo.
Como um pênis ereto.
Como uma vara rotunda dentro de sua boca.
Como uma verve imunda dentro de seu anûs.
Pois o prazer a inunda. O amor a completa.
"All we need is love"
Ela canta. Ela quase canta, em meio ao esperma e a saliva que completam seu rosto e fecundam seus olhos.
"All we need is love"
Ela grita, mas sua voz ganha eco dentro de suas vértebras e se perde em seu estômago.
"All we need is love"
"Love"
Ela chora em desespero e suas lágrimas masturbam seu rosto e violam sua voz, quando todos os úteros se tornam inférteis.
"Love is all we need"
Ela chora.
"Love is all we need"
Chora.
"Love is all we need"
E chora.
Mas não sente nada.
Nunca.
Ela nunca sente nada.

Quase

Como

Se

Tivesse

Nascido

Quebrada.

Enfim,
o Dragão repousa.
E o seu sono pesa dentro dela.
O desejo desvanece e o calor retorna ao frio.
Como uma agulha.
Como um gancho.
Um pequeno gancho agarrado a sua boca que engole sua face e distorce seu sorriso falso quando o vento a toca e a água invade seu útero durante as manhãs vazias e simplórias diante das reprises da TV.
Diante do noticiário.
Diante dos colegas de trabalho.
Diante do maldito espelho quebrado que se recusa a parar de refletir a expressão de tédio que se repete em todos os cacos da mesma forma.
Os mesmos olhos.
A mesma boca.
A mesma mentira.

Mas a moça sabe que em breve o Dragão renascerá de novo e sua paixão afiada a de retornar uma vez mais para ela.
E a agulha.
E a seringa.
E o amor.
Pois o amor vencerá no fim de todas as coisas.
Sim.
O amor sempre vence.


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O título deste post é uma citação ao título do capítulo 5 do livro O Cheiro do Ralo, escrito por Lourenço Mutarelli e lançado no Brasil pela Devir Livraria. Interessados em conhecer a obra do autor (que eu recomendo completamente) podem acessar o link http://www.devir.com.br/mutarelli/ , garanto que valerá a pena. 

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

O HOMEM BRANCO - SIMETRIA

Seus olhos arderam e sua mente tropeçou ao perceber a figura diante de si. A água havia tomado conta de todos os lugares de sua vida durante aquela manhã pálida de outubro e a chuva se interpunha feroz entre o pátio vazio e os resquícios sobressalentes de sua sanidade.

O Homem Branco fugia.

Completamente perdido e sozinho em um mundo devastado, ele percebia tudo ceder ao seu redor enquanto corria, pé ante pé, desviando-se a todo o custo da inundação.

Naquele momento todas as coisas passavam por sua vista como penumbras distantes enquanto a morte e a dor erguiam-se com violência por todos os lados. De súbito, Homem Branco sentiu suas pernas estremecerem e fraquejarem e percebeu algo assustador movendo-se a sua frente: uma iminente figura deitada ao chão de forma solene, como um nobre rei. Imune a água e imune a dor, o estranho ser ergueu sua cabeça em um gesto astuto, encarando o Homem Branco de forma severa.

Era um enorme Tigre Pardo, com os olhos ardendo feito chamas em fúria.

Paralisado por breves segundos que se estenderam e se desdobraram em sua mente, o Homem Branco sentiu-se tomado pela força devastadora de um rio que jamais muda o seu curso. Confuso, ele quase não pôde perceber o salto do animal em direção ao seu tronco, com seus dentes apontados como lâminas penetrando sua pele e fincando profundas em sua alma. Em seguida veio a dor e o sangue. O gosto da derrota fraquejou em sua mente e tomou sua garganta. O Homem Branco olhou para o vazio dos céus e caiu entorpecido, como uma folha largada em uma tempestade. Seu corpo atingiu a água de forma violenta, e suas costas foram impressas no mármore.

Naquele terrível momento algo aconteceu. O Homem Branco ouviu um sussurro vago em sua mente. Algo distante e sombrio que exalava vinho tinto e carne fresca. Sua mente desfaleceu diante da voz. Duas vozes, na verdade, duas vozes de mulher. Do seu lado Direito falava Maria, a virgem, e do lado Esquerdo falava Madalena, a prostituta. Nos lábios de ambas o Homem Branco podia sentir o cheiro do Ouro e do Pó.

A indecisão tomou seu sangue como os lábios do Tigre Pardo e naquele momento o Homem Branco exitou.

Ao recobrar a plenitude de sua consciência o Homem Branco percebeu, assustado, que o Tigre estava deitado ao seu lado. Os olhos antes vermelhos do animal agora estavam cegos e o Tigre parecia embebido em sangue. Mas não era o sangue do Homem Branco desperdiçado e sim o sangue da própria fera que se revelava insólito ao chão. Nesse momento, o Tigre Pardo falou:

"Eu te revelo um grande mistério nesta hora, quando todas as tuas esperanças falham.
Tu que está em pé entre o abismo da altura e o abismo da profundeza saiba que em cada um dos lados lhe espera um Companheiro; e aquele Companheiro é Tu Mesmo.
Tu não pode ter outro Companheiro.
Muitos sábios têm erguido sua voz e dito: 'Procura a brilhante Imagem no lugar sempre-dourado e uni-vos com Aquilo';
Da mesma forma, muitos loucos têm erguido sua voz e dito: 'Desce ao mundo da escuridão esplêndida e desposai aquela Criatura Cega no limo';
Eu, que estou além da Sabedoria e da Loucura, ergo-me pra ti e digo: realizai ambas estas bodas! Uni-te a ambos os Companheiros!
Cuidado, cuidado eu te digo, não procureis um deles para perder o outro.
Se algum dia Tu quiser seguir-me e tornar-te como eu, ao teu próprio modo, prossegue então retamente erguido, com a cabeça acima dos céus e os pés abaixo dos infernos."

Assim disse o Tigre Pardo, e sua penumbra sumiu perante o pátio vazio. A chuva cessou. A água se conteve. E o Homem Branco, uma vez mais, tornou-se feliz.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O HOMEM BRANCO

O Homem Branco teve um sonho frio durante uma noite quente, e em seus olhos era possível ver refletida a deformada figura de uma torre cinza, a repousar sobressalente em uma colina parda.
A pele de concreto frio da torre podre se ergueu por sobre os pés do Homem Branco como um cancêr, e em seu topo dentes lânguidos permeavam os lábios de uma boca negra, apontados para o vazio do céu como uma ordem ou como uma acusação.

O vento rugiu.

A forma gigantesca dos Galináceos de Néon Fosco ainda pairava sorrateira entre o Homem Branco e a torre cinza, com seus ossos ancestrais fosforescendo e sobressaindo de suas peles transparentes e de seus olhos úmidos. Os monstros percorriam as rochas de forma lenta e ereta, em busca de sua caça noturna. Predadores de natureza robusta, oriundos da radiação do mar e das estrelas, infectados pelo ardor de seu pecado original.
Naquele momento algo aconteceu: o Homem Branco percebeu um gosto estranho a lhe tomar as entranhas. Seu sangue ferveu e o ácido de bateria contido em seu corpo percorreu suas veias como veneno, deleitando seu coração como o vinho e abarcando sua alma como o mar. A este sentimento tão obtuso e tão assassino o Homem Branco concedeu o nome de SOLIDÃO.

E ele beijou sua solidão. E Ela lhe beijou de volta, como Judas.

DEUS SALVE A RAINHA!

Impresso na gráfica dos Judeus-Sem-Pênis.