escrito por Igor Reale e Raoni Holanda
CAPÍTULO III
Complexo de Agemir
Existem bares em praticamente todas as esquinas da cidade de Macapá, e em todos eles é comum encontrar duas ou três pessoas mal-encaradas.
Esse bar, no entanto, era uma exceção.
Nele, TODAS as pessoas eram mal-encaradas.
Desde a garçonete japonesa.
Passando pelo casal de namorados.
Até chegar ao gordo suado e nervoso sentado na mesa ao fundo.
Surpreendentemente, o gordo suado e nervoso sentando na mesa ao fundo é Agemir, que observa o casal de namorados com doentia curiosidade.
Mais surpreendente ainda é notar que o casal de namorados é na verdade, “Torre de Pisa”, a pequena vizinha pela qual Agemir é secretamente apaixonado, e seu atlético e imbecil namorado, cujo nome ninguém sabia realmente.
Sem perceber mais ninguém a não ser os dois, Agemir se assusta ao notar a garçonete do estabelecimento postada ao seu lado, uma esquisita adolescente japonesa que o observa com desdém.
A moça lhe serve uma bebida e vira de costas com pressa, quando Agemir levanta a voz e diz:
- Com licença senhora, este papel estava na minha bebida.
- E tu leu o que tava escrito nele?
- Sei lá! Algo sobre o abismo me olhar? Bem, eu li... Mas tava todo molhado (tipo, dentro do copo).
- Quer saber duma coisa? – reclama a garçonete, impaciente.
SOC!
A garçonete japonesa supreendentemente esbofeteia o rosto de Agemir com força e diz:
- PORRA! Eu passo o dia todo recortando essa merda! O dia todo! E nenhum desses filhos-da-puta, lê! Ninguém!
Todo mundo se faz de cego nessa merda de bar, bando de...
E assim ela vai embora, e deixa Agemir sentado com cara de tacho.
Ainda em choque, Agemir nota um estranho homem parado, em pé, encarando-o com ódio.
- Que foi? – diz Agemir, fraquejando.
- Eu vim eliminar os servos de satã! – diz o homem, e levanta sua camisa de forma a deixar visível o enorme cabo da faca pendurada em sua cintura.
- Que? – balbucia Agemir, por reflexo - Desculpa, mas hoje tô sem trocado...
- Que palavras são essas? Por acaso tu és um deles? Há! Eu devia saber! MALIGNO!!!
Brada o homem com ódio, e o hálito de cachaça e pedras de crack invade as narinas de Agemir.
Com a agilidade e destreza dignas de um samurai feudal, o estranho homem saca o facão e o põe no pescoço de Agemir com violência.
Agora, nosso improvável herói parece estar em sérios apuros!
Conseguirá Agemir sobreviver desta vez?
Enquanto isso:
Kimoto é o dono do movimentado bar.
De origem japonesa, o recatado senhor chegou ao Amapá há cerca de 40 anos.
Durante esse tempo tudo o que Kimoto realmente desejou para si foi prover o sustento de sua amada filha e ganhar a vida com honestidade.
No entanto, o único lugar em que Kimoto conseguiu montar seu estabelecimento comercial e erguer sua própria residência foi num bairro repleto de putas e bandidos.
Mas o pobre Kimoto tinha um sonho, e continuaria tendo esperanças de realizá-lo mesmo nos piores momentos.
Por isso pedia para sua filha mal-criada recortar mensagens bonitas de incentivo e colocá-las discretamente nos copos dos clientes, para que todos se sentissem felizes.
Kimoto pagava seus impostos com orgulho e freqüentava a igreja todos os domingos, na missa das 7 horas em ponto.
O retorno veio hoje.
Esta manhã finalmente o banco ligou. O financiamento de sua nova casa em um bairro nobre da cidade (com espaço para abrir um bar muito maior e melhor) havia sido aprovado.
Em breve Kimoto sairia dali.
DEUS EXISTE
Naquele mesmo instante, no entanto, Kimoto percebeu algo errado acontecendo em seu estabelecimento respeitável.
Um casal de adolescentes mal-encarados beijava-se obscenamente em uma das mesas.
A menina com certeza é menor de idade.
Kimoto irá expulsá-los.
Ao mesmo tempo, o rapaz da xérox finalmente encontra o bar maltrapilho onde havia marcado o encontro com Agemir. Despreocupado, ele caminha vagarosamente por entre as mesas até perceber Agemir sentado ao fundo, escondido, abordado de forma incomum por um homem estranho que lhe pressiona uma enorme faca contra o pescoço.
- Ei Agemir, começou! Catei uma pedra com um formato engraçado lá fora. Toma pra ti-- Ei, que porra é essa?!?
Ao encarar o homem com o facão nas mãos, o rapaz da xérox imediatamente o reconhece e exclama, em voz alta:
- Fogueira Santa! E aí véio, como tu anda?
Os dois abraçam-se como velhos amigos.
- Na mesma. Tu conheces esse figura aqui?
- É claro! É claro! Ele é FODA!
- Quem?
- FODA!
- como assim FODA?
- Tô te falando, o próprio FODA. Enviado de Gvazir 5 para a Terra.
BREVE EXPLANAÇÃO SOBRE O CONCEITO DE FODA SEGUNDO GVAZIR 5:
Edimir é um rapaz não muito bonito nem muito feio. Suas notas na escola eram medianas e ele era conhecido por falar sempre moderadamente, nem mais nem menos, nem muito nem pouco.
Edimir nasceu prematuro. Quando ainda estava em gestação, sua mãe foi atropelada por um caminhão de 30 metros que carregava árvores. Sua cabeça foi esmagada.
No entanto, Edimir sobreviveu milagrosamente e foi retirado do ventre de sua falecida mãe no hospital, onde permaneceu algumas semanas em uma incubadora.
Aos 15 anos Edimir fugiu uma única vez de sua casa durante a madrugada para experimentar maconha com alguns de seus colegas de escola.
Ele estava muito nervoso e inseguro e tinha medo de mentir para sua família (pai, madrasta e dois meio-irmãos), mas prosseguiu mesmo assim.
Naquela noite, um satélite da NASA saiu de órbita por acidente e desabou, coincidentemente, sobre a casa de Edimir, matando instantaneamente todos lá dentro.
Edimir foi reembolsado com um cheque de 50 milhões de dólares pelo governo americano. Ele nunca mais teve que trabalhar ou mesmo se preocupar com dinheiro durante o resto de sua vida.
Aos 23 anos Edimir namorava a garota mais linda da cidade. Ela tinha sido eleita Miss Cupuaçu Dourado em uma festa local e estava iniciando uma carreira de modelo (já havia estrelado um comercial de cerveja).
Na noite em que Edimir pediria sua mão em casamento, a jovem morreu eletrocutada acidentalmente por um barbeador elétrico enquanto depilava suas pernas.
No dia seguinte, durante o velório, Edimir conheceu Cíntia, uma prima de segundo grau de sua falecida namorada. Eles se apaixonaram imediatamente.
Edimir descobriu então que Cíntia era seu verdadeiro amor, sua alma gêmea. Eles se casaram após 2 anos de um intenso namoro.
Hoje, Edimir vive despreocupado em um pequeno vilarejo na França onde montou uma produtora de filmes independentes e apóia jovens e talentosos cineastas.
Edimir é FODA.
De volta à trama...
Ao constatar as palavras do rapaz da xérox, Fogueira Santa ajoelha-se perante Agemir em sinal de reverência e chora ao beijar suas mãos.
- Me desculpe, ó grande enviado. – diz em meio à lagrimas.
- Que significa isso?
- Existem outros com diferentes funções por aí, Agemir. – responde o rapaz, - Agora Fogueira Santa nos ajudará em nossa missão e coisa e tal.
Enquanto isso, do outro lado do bar, Kimoto e Torre de Pisa iniciam uma exaltada discussão.
Kimoto só quer fazer a coisa certa.
Torre de Pisa só quer se divertir um pouco.
E seu namorado... bem...
...Ninguém sabe ao certo o que quer o namorado de Torre de Pisa. Ninguém, nem mesmo Torre, sabe sequer o nome do jovem (em compensação, ele também não sabe o dela).
Os dois se conheceram em uma sala de bate-papo por celular. Seu apelido era MAROMBADO_18 e é assim que todos os chamam.
Ele torce para o São Paulo F. C. e gosta de jogar basquete.
Aos 14 anos começou a se aplicar Mass Way, um fortificante de cavalo que o deixava musculoso e o tornou popular entre as garotas.
Alguns meses depois ele perdeu a virgindade. MAROMBADO_18 não sabe ao certo o que aconteceu, mas, depois de descobrir o sexo (ele gozou mais rápido do que você poderia contar) ele nunca mais conseguiu diferenciar nomes e rostos de nenhuma das pessoas que conhecia.
Todos tinham uma nuvem cinzenta na face.
Todos tinham a voz parecida.
Seus amigos.
Sua família.
Sua namorada.
E todos os outros naquele bar.
MAROMBADO_18 se sentia bastante confuso quanto a tudo. Na verdade, pensar era algo difícil para ele.
Em meio à enorme confusão gerada por Torre de Pisa e Kimoto, Fogueira Santa desvincula-se de Agemir e do rapaz da xérox sem ser percebido e esgueira-se cautelosamente por entre as mesas e cadeiras do bar. Em silêncio, suas mãos procuram pela arma em sua cintura e, delicadamente, degola Kimoto com a navalha afiada de sua faca, para a surpresa de todos no bar.
O sangue jorra como água.
Fogueira Santa matou sua mulher e seus dois filhos a pauladas na noite de natal do ano passado.
Eles não serviam a Deus da maneira certa.
Sua mulher pintava o próprio rosto com aqueles tubos feios e seus filhos ouviam músicas de satã nas rádios todos os dias.
Fogueira Santa sente a falta deles algumas vezes.
Mas agora, ele finalmente encontrou Agemir.
Esse foi o sinal de Deus.
E a voz divina pede para que ele inicie a purificação.
Dessa forma, Fogueira ergue um enorme sorriso em seu rosto e, impulsionado pelas drogas em seu organismo, ataca e mata todos as pessoas no bar.
Agemir observa nervoso.
O rapaz da xérox apenas fuma.
A garçonete japonesa, alheia a tudo, conta suas gorjetas (ela vai poder comprar sua linda lingerie, finalmente).
Torre de Pisa corre desesperadamente para fora do bar.
Isso a salva da morte.
Infelizmente, MAROMBADO_18, menos inteligente, corre desesperadamente para dentro do bar.
Isso o condena a morte.
E Kimoto é mandado direto para o inferno.
Em desespero, MAROMBADO_18 se esconde dentro do banheiro masculino.
Agemir o segue.
Em todo o mundo estranhos eventos começam a ocorrer simultaneamente.
Um exemplo destes bizarros fenômenos acontece na Índia, quando Ghandi renasce como uma barata e acaba, tristemente, esmagado por pés que não o notam.
MAROMBADO_18 está encolhido ao lado da privada.
Ele chora.
Em algum lugar no Amapá, Cabralzinho renasce como um pato. Seu pescoço é quebrado, ele é depenado e posto para cozinhar durante 10 minutos em água fervente.
Ele é cortado em pedaços pequenos.
Banhado em tucupi.
E será devorado no próximo Círio de Nazaré.
Agemir dá a primeira pancada com a enorme pedra de formato engraçado em suas mãos, cortesia do rapaz da xérox.
O crânio de MAROMBADO_18 racha ao meio e o banheiro é inundado por sangue.
Padre Cícero renasce como um cácto no sertão nordestino. Em meio a seca, seus conterrâneos o cortam e o servem como comida típica para alguns turistas irlandeses.
Sim, a fome mata.
O namorado esta morto.
Agemir sorri.
Pela primeira vez em muito, muito, MUITO tempo, Agemir sorri de verdade.
A garçonete japonesa está encolhida próxima ao cadáver de seu pai.
Ninguém a vê ali, nem mesmo Fogueira Santa.
Isso a salva da morte.
Fogueira Santa acha os pequenos pedaços de papel com mensagens otimistas espalhados pelo chão do bar e, em meio ao cruel assassinato de todos os bêbados, loucos e cornos que desperdiçavam suas horas naquele maldito lugar, os lê em voz alta.
A garconete sorri.
Agemir sai vitorioso do W.C.
Fogueira Santa impôs seu julgamento de sangue ao bar.
Todos estão mortos.
O bar está imerso em sangue.
Pela manhã, todos os jornais do país noticiarão esta carnificina sem sentido.
Todos irão cobrar das autoridades a prisão imediata dos responsáveis (Ana Maria Braga, inclusive, irá chorar em seu programa ao falar sobre o assunto).
O Amapá será noticia nacional (não é SURPREENDENTE!!!!!!).
O rapaz da xérox fica deslumbrado com o espetáculo de horror e sangue.
Ele fuma.
Mas depois lembra que isso pode matá-lo de câncer no pulmão.
Ele conseguiu.
EPÍLOGO
Agenor iniciou hoje o estágio em um órgão público.
Na maior parte do tempo, seu trabalho é tirar xérox.
Agenor é tímido e retraído e, no geral, apenas escuta enquanto os outros falam. Infelizmente, devido a isso, Agenor é obrigado a escutar todos os dias a mesma ladainha vinda do homem que tira xérox.
– Égua do clima! Lá na ‘Travessa do Baxinho’ o tempo não era assim, não... Lá cedinho eu acordava, matava um cabrito, tomava aquele leite de égua... AH... Claro, tu tens que entender que eu não tenho mais a mesma disposição dessa época. Hoje eu acordei e tinha uma nascida bem no meio do meu--
Nesse momento, uma mulher de voz esganiçada entra na sala e diz:
- Mas, seu Jucelino, o senhor já viu essa gangue de filha-da-puta aqui no jornal? Eles passaram o terçado num monte de gente dentro dum bar, menino! Mano, esse mundo ta perdido mesmo...
- HÁ! Falta de porrada dona Cacilda! Falta de porrada! Isso resolve tudo. Meu filho, um dia apareceu com um brinco aqui na orelha. Pois eu arranquei a viadagem na mesma hora que vi e fiz o moleque sangrar! E ele morreu? Que Nada! Falta de porrada! Isso que resolve toda essa...
FIM