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Abarcar o mundo ou abraçar o mar.

domingo, 29 de abril de 2007

O Jardim das Flores Humanas

Era um Jardim feito de pessoas. Eram pessoas feitas de flores. Eram flores que formavam um imenso Jardim. Se você um dia disser que este Jardim existe, cortarão sua língua e arrancarão seus dedos. Se você um dia encontrar este Jardim, ficará louco. Mas se você não acreditar todos os dias na existência do Jardim, seu corpo murchará e sua alma definhará em pó.
Eu, quando ainda era jovem e ainda possuia coração pulsante, encontrei este Jardim e por ele caminhei, sentindo os pequenos corpos apetalados contorcendo-se e quebrando-se sob meus pés, soltando gritos de dor que para mim não passavam de doces sussurros.
Caminhei calmamente, pé ante pé, fumando um charuto novo, derrubando as cinzas recém queimadas sob os pequenos homens feitos de flores (ou flores feitas de homens, mas você já entendeu...). Após meia hora de caminhada pelo Jardim, sentei-me, o sol se punha, alaranjado aos fins da vista: rosa-vermelho-estático-pitoresco. Nos últimos minutos do entardecer as flores humanas tornaram-se rijas, ergueram seus rostos aos céus e cantaram, cada uma das centenas de milhares de flores, uma música diferente e incompreensível, que, misteriosamente, uniam-se e formavam uma única canção, cantada no idioma esquecido.
Confesso que tentei cantar junto às flores do Jardim; compreendi o que sua canção dizia, e você, se estivesse lá, talvez também compreendesse: falava sobre o tempo, só e simplesmente o tempo; mas tornei-me mudo, nenhum som saiu de minha boca.
Dez minutos se passaram e a canção acabou, o sol havia sumido, as flores fecharam-se e dormiram e o jardim ficou pálido e sombrio.

Acendi outro charuto e retornei, pisoteando as flores com ainda mais força. Cheguei até o enorme portão cinza, voltei-me e cuspi, enciumado, nas flores mais próximas. Fui embora. Desejei esquecer o pequeno caminho de terra que me levou até lá, próximo a árvore oca na densa floresta atrás da Vila, exatamente como no mapa de minha avó. Desejei esquecer o enorme portão e o olhar curioso de todas as pequenas flores humanas em seu Jardim esquecido. E esqueci. Esqueço-me cada dia um pouco mais. Mas tornei-me mudo para sempre.


sábado, 28 de abril de 2007

Seja Bem-Vindo ao Mixomatosis: A Cidade-Porto dos Corações Vazios.


Esqueça as latas de refrigerante que engolem a calçada lá fora. Esqueça os bêbados sem alma e os padres sem sêmen. Entre no Teatro.
Atravesse a cortina vermelha e sente-se na poltrona com sua cor predileta. Estique as pernas e saboreie um sorvete quente. Coma, converse e entretenha-se até as luzes se apagarem. opa! Apagaram-se.

Agora faça silêncio:



(a cacofonia irrompe e a ópera começa - o escritor senta-se ao centro do palco, puxa sua pena de ponta prateada e rabisca as primeiras palavras - Deus morre e o universo é criado, a maçã de Eva apodrece em nosso estômago e nascem as cidades, nasce a Rainha, surge o pequeno Vilarejo onde sempre vivi, , eu morro, você nasce - e o escrito prossegue, atroz e certeiro, a ópera suicida da cidade-porto dos corações vazios)
(e a ópera não tem fim - embora o escritor, outrora jovem e entusiasmado, agora têm seus cabelos e barba já brancos, lhe caindo sobre o peito; sua pena ruma torta á derradeira linha, cansada, pré-sênil; enjaulado e faminto, sem família, sem mulheres e sem dinheiro, o escritor prossegue. Prossegue morrendo. Morrendo por todos nós.)

Goze, sorria e satisfaça-se ( afinal sua triste vida, sua lenta caminhada rumo à obesidade, à impotência e ao desagrado solitário jamais superará um só ato desta Ópera Suicida). Complete-se durante o espetáculo. Inveje o escritor quando jovem: por seu gigarro de fumaça espessa e por seu sorriso de canto de boca que provoca suspiro nas donzelas. Inveje-o quando velho: ainda que mal trajado - sem linho? que horror! - ele ainda conserva algo daquele olhar flamejante de outrora. Conspire sua morte com os demais espectadores. Espere o momento certo para cortá-lo, dividí-lo e devorá-lo ( e, posteriormente, defecá-lo no bidê).

(Oh! perdoe-me por esta longa intromissão senhor, não pretendia distraí-lo deste magnífico espetáculo com minhas tolas interpretações. Ignore minha presença. Ignore este pequeno mundo. Contemple a Ópera.)

DEUS SALVE A RAINHA!

Impresso na gráfica dos Judeus-Sem-Pênis.